domingo, 30 de agosto de 2009

ABICADA - Interessante Estação da Época Romana - 1941

Não sabe ainda a Arqueologia, de positivo, o que encerra o local conhecido pelo nome de Abicada. Isto porque as escavações por mim iniciadas em Agosto de 1938, foram suspensas. Vamos, porém, fazer uma resumida descrição do que até agora conseguimos pôr á vista, para que, pelo menos no Algarve, se não ignore que ali existiram curiosos vestígios da civilização romana, que já foram com justiça classificados Monumento Nacional.
A Abicada é uma propriedade particular situada na confluência de duas ribeiras que descem da serra de Monchique a desaguar na Ria de Alvor: a ribeira do Farelo e a da Senhora do Verde. Dista de Portimão 7,5 quilómetros, e de Lagos 10 quilómetros e 800 metros.
Para mais facilitar aos que desejem contemplar o local, diremos que um pouco antes do Povo da Figueira (para quem vai de Lagos para Portimão) precisamente no sítio onde na estrada nacional se encontra o pequeno marco indicando que se passaram 800 metros após o quilómetro 10, aí mesmo ao lado direito, tem início uma estrada particular; seguindo-a até ao fim, vai dar-se ao Monte grande da propriedade da Abicada, em frente do qual, um pouco a Sul, se encontram as ruínas.



A planta das construções, que juntamos para melhor se compreender a nossa descrição, mostra ter sido um grande palácio, formado por três corpos distintos, mas conexos. Ao norte em linha recta corre uma parede comum com 54 metros, que de grossura deveria ter uns 70 centímetros; não há nesta parede vestígio algum de porta e em toda a sua extensão no exterior vê-se um aqueduto que despejava para dentro da construção por dois tubos de chumbo. A largura do edifício não a podemos precisar, visto a parte sul estar completamente destruída, variando a altura dos muros até um metro, nos sítios onde foram menos inutilizados pelos sucessivos amanhos da propriedade; a máxima largura que podemos verificar mede cerca de 28 metros.



Pela sua extensão julgo tratar-se de uma «Villa», casa de campo, de patrício rico; isto é, uma residência aristocrática, pois não creio que qualquer plebeu tivesse podido dar-se ao luxo de possuir uma casa tão grande e com tantos mosaicos.
Temos que pedir um pouco de auxílio à nossa imaginação para não fazer simplesmente uma descrição seca da planta; acompanhe-mo-la com a presunção do destino ou utilização de cada um dos compartimentos, segundo o que nos sugerem as divisões encontradas.
Como suponho que a entrada «Prothyrum» (A) era pelo corpo central e do lado sul, comecemos por aí a visita ao edifício.
Se esta parte não estivesse totalmente destruída poderiam certamente encontrar-se vestígios do célebre e conhecido dístico das casas ricas romanas: «Cave canem» (cuidado com o cão), cujo desenho em mosaico acompanhava o gracioso aviso.
Este corpo, que possivelmente seria o androceu (a parte de habitação destinada aos homens) é formado por seis compartimentos em disposição hexagonal, tendo ao centro um tanque «impluvium» (B) também hexagonal, separado dos «cubicula» (C) (quartos) por um «atrium» (D) ou corredor com 2,10 metros de largura; o tanque mede 2,20 por lado e em cada ângulo teria uma coluna, feita de tijolos triangulares, como verifiquei pelos vestígios encontrados. Dos seis compartimentos o de norte seria provavelmente o «triclinium» (E), pois era o maior. Todos eles tê em porta para o átrio, sem vestígio de qualquer outra saída. Os restantes seriam os «cubicula», algum deles possivelmente o «tablinum». Todas estas divisões, incluindo o tanque e o átrio, tinham o pavimento coberto por mosaicos policromos, mas só dois estão intactos; dos restantes há vestígios, apenas.



A poente desta construção central há uma outra em forma rectangular: ao centro o «peristylum» (F), pátio cercado de colunas, em volta do qual um «ambulacrum» (G) ou corredor que o envolve dos quatro lados, comunicando tanto para o norte como para o sul por amplas aberturas, com os outros compartimentos; e todos seriam afinal os aposentos das mulheres o «gynaeceum» (H) com o «oecus» (I) ou sala de recepção, junto dos quartos particulares da «matrona». A nascente e poente do corredor as «alae» (K) onde está o larário, com os deuses protectores da família e da casa, e conjuntamente relíquias e recordações de antepassados.
Nalguns destes quartos não faltavam os «frescos» nas paredes, dos quais vagas amostras estão guardadas no Museu de Lagos. Pena é que sejam fragmentos tão pequenos que não possa chegar-se a perceber qual o desenho que continham; das suas cores bastante desmaiadas ainda se conhecem o vermelho, o amarelo e cor de tijolo.
As suas decorações feitas a capricho, como era costume entre os romanos, deveriam formar um conjunto primoroso, de paredes ricamente pintadas.
Todos estes compartimentos são também revestidos de lindos mosaicos, sendo o do pátio central o mais bonito e variado.
A diversidade do seu desenho e colorido, tornam quási impossível a sua descrição; forma como que um tapete que por completo cobre o chão, numa área de cerca de trinta metros quadrados, tem em volta uma cercadura de entrelaçados e diversas figuras geométricas, cordões, flores estilizadas, etc..; no centro estrelas estilizadas e cordões entrelaçados, emoldurados por rectângulos multicolores. Os outros mosaicos não são menos interessantes: predominam as figuras geométricas com rendilhado mais ou menos fino. Há porém um a que devo fazer referência especial; não porque o seu conjunto seja mais interessante, mas porque nele se acha repetido, três ou quatro vezes, um símbolo que se diz de origem oriental e representante do coração de Budha, mas que já se encontra em monumentos proto e pré-históricos e em muitos ornatos da época romana: a cruz suástica. Aqui não é a suástica propriamente dita, mas sim a sua forma de hastes voltadas para a esquerda a que se dá o nome de «sauvastica». São também assim as do mosaico de Boca do Rio, encontrado por Estácio da Veiga e que hoje está no Museu Regional de Lagos. Neste mesmo pavimento se podiam ver alguns ornatos com fragmentos vítreos azuis, vermelhos e verdes, que uns visitantes se entretiveram a arrancar... para recordação! Foi curioso o comentário do guarda quando mo contou: «... e eram senhores de gravata»!



Finalmente o corpo do edifício a nascente seria a parte destinada aos escravos, celeiros, cozinha e mais dependências, com dez ou doze divisões bem definidas. Só em uma delas encontrei vestígios de mosaico e uma só também tinha o chão completo de tijolo.
Deveria portanto o edifício na sua totalidade ter mais de trinta compartimentos, o que representa certa opulência.
Pela policromia rica destes mosaicos lembra-nos que a construção seja do séc. 111 ou IV da nossa Era. Os poucos objectos encontrados nada nos dizem, mas as moedas legíveis são de várias épocas, desde o séc. I A. C. representado por um grande bronze de Antónia Augusta, mulher de Drusus, falecido em 39 A. C., até ao Séc. IV de que há vários médios bronzes, sendo os séc. II e III representados por moedas de prata de Antoninus Pius (138-161) e Júlia Mamaea (mãe de Alexandre Severo, falecida em 235).



Estes objectos, moedas, vestígios de estuque pintado, fragmentos de mosaico, que, por estarem isolados e em princípio de destruição, foram extraídos, estão no Museu Regional de Lagos, onde pensamos também expor uma pequena maquette da Estação da Abicada. Ainda a cerca de vinte metros a sudoeste destapei as ruínas de uma adega, lagar ou simplesmente tanques de salga, com os seus tinos revestidos de (opus signinum) o tal cimento que Estácio da Veiga, muito justamente, julga pré-romano. Esta construção infelizmente foi há pouco destruída na sua totalidade pelos donos da propriedade da Abicada. Compunha-se de um edifício formado por vários tanques de dimensões variadas que parecia comunicarem com outros tanques maiores colocados a nascente e sul; pelo lado norte corria a toda a extensão um aqueduto de alvenaria que se prolongava para poente até junto da nora recentemente aberta, mas com vestígios de sequência. Tanto este edifício como a casa eram construídos com essa fortíssima argamassa, como hoje se não faz, pois julgo que se perdeu a fórmula da sua composição.
Fiquei deveras surpreendido de não ter encontrado o (tepidárium), nem tão pouco a sala de ganhos frios com a sua respectiva piscina; nem a sua falta é justificada pela admirável situação do prédio na confluência das duas ribeiras e muito próximo do mar. Ficaria na parte arrasada? Enigma até agora indecifrado.
A ausência de vestígios de cerâmica fina, vidros e outros objectos miúdos, muito vulgares nestas explorações é explicável pela utilização posterior desta casa, o que foi fácil verificar pelos restos de argamassa e construções completamente diferentes do «opus incertum» romano. Para essa utilização fizeram novas divisões e por certo extraíram previamente os entulhos romanos.
Na comunicação que fiz superiormente em 1938 do que tinha posto à vista na Abicada, disse eu que entre os objectos encontrados existia um bocado de chumbo cuja serventia não tinha conseguido decifrar, não tendo visto ainda descrição de outro semelhante em autor nacional ou estrangeiro. Por isso o apresento como possível novidade arqueológica, podendo, porém, afirmar já, com absoluta certeza, o fim a que tal objecto se destinava.
Trata-se de uma peça de chumbo formada de duas hastes compridas de secção semi-circular, unidas por dois curtos espigos cilíndricos; téem as faces internas planas, notando-se que as faces curvas exteriores teriam sido moldadas com uma forma, do que resultou ficarem lisas, ao passo que nas faces planas interiores se verifica certa aspereza, proveniente de o chumbo ter solidificado sobre uma superfície mal polida.
Mede de comprimento 12 centímetros; cada uma das hastes moldadas tem de largura na face plana 1 centímetro e de grossura meio; os espigos teem de diâmetro três milímetros e sete de comprimento, sendo este o afastamento constante das duas peças moldadas, cujas faces são paralelas.
Logo de princípio deu-nos a impressão de que o chumbo teria sido aplicado como enfeite de qualquer objecto para ser visto de ambas as faces, objecto este que não poderia ter sido de vidro ou madeira porque sendo indubitavelmente aplicado o chumbo derretido, o vidro estalaria com tão alta temperatura e a madeira queimar-se-ia. Veio-nos logo I à ideia que seria aplicado a barro, mas longe de imaginarmos a sua utilidade, o que por muito tempo nos intrigou. Só quási no fim das escavações um novo achado nos elucidou por completo: era afinal Um Gato para ligar louça quebrada. Mas tão grande e tão diferente dos actuais que se não encontrássemos este segundo exemplar ainda ligado a um pedaço de louça, talvez não fosse possível afirmar o seu destino. As peças a engatar ligar-se-iam com inteiro ajustamento dos bordos quebrados; a igual distância de cada lado da quebradura far-se-ia um orifício que atravessava o barro e não como hoje que os orifícios se fazem apenas com a profundidade suficiente para prender a ponta recurvada do gato. Deitar-se-ia chumbo derretido nos orifícios, tendo de cada lado a forma onde seria comprimido o chumbo.
Deve ter sido este o processo mais primitivo de concertar louça, mas é indubitável que assim era usado pelos romanos, pois são indubitavelmente romanos os fragmentos de louça encontrados, não só por si, como por todo o ambiente em que foram achados e por todos os outros objectos que os acompanhavam.



Por enquanto nada mais é possível acrescentar a não ser que no monte, construção de recente data, no muro próximo da nora e nesta, muito fácil é encontrar as pedras que formavam outrora paredes daquele soberbo edifício, que gerações posteriores demoliram ou com o seu desleixo consentiram que o tempo destruísse, privando-nos de podermos fazer in loco um estudo perfeito do modus vivendi dos habitadores remotos daquelas vestutas ruínas.
Os chãos de mosaico acham-se por agora tapados de terra, sem o que seriam destruídos pelas chuvas, visto que não foram consolidados.
Ver-se-á tudo ainda destapado e de modo a resistir ao tempo, podendo ser admirado por nacionais e estrangeiros para glória do nosso Algarve? Não o creio; quando isso for resolvido não valerá a pena. Dentro de pouco das ruínas romanas da Abicada restarão estas palavras e estas fotografias a recordar-lhes a existência.
Pelo menos, foi esta impressão que colhi da última visita que lá fiz há meses.

Lagos, Junho de 1941
José Formosinho




1 comentário:

  1. É importante que se dê a conhecer a nossa história, embora esteja ao abandono e não desperte o interesse de quem devia!!!

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