sábado, 13 de março de 2010

ABICADA – A História e as Efemérides

  • A História

( apontamento dactilografado pelo Dr. José Formosinho em 1940 )

  1. Estando a organizar o Museu Regional de Lagos e recordando-me de ter visto no sítio da Abicada restos de um chão de mosaico já bastante deteriorado, resolvi salvar o que dele existisse trazendo-o para o Museu, para o que em fins de 1935 me dirigi à Firma " Severo Ramos Lª ", pedindo essa autorização .
  2. Combinada certa indemnização pelos prejuízos que causasse iniciei os trabalhos . Mas ao destapar o referido chão verifiquei que estava muito mais completo do que eu supunha e simultaneamente mandando abrir umas valas por suspeitar que mais alguma coisa haveria, descubro mais quatro chãos e muitos vestígios de construções. Embora como Director do Museu tivesse muito empenho em arquivar nele essas preciosidades, ficaria mal com a minha consciência, sob o ponto de vista arqueológico, se fizesse a extracção sem participar o que ali tinha encontrado .
  3. Por lealdade escrevi também à Firma " Severo Ramos Lª " (carta de 20 Dez. 1935) dizendo que não sabia ainda se valeria a pena estabelecer ali uma estação de estudo e deixar lá ficar expostos todos os objectos que fossem encontrados .
  4. O Snr. Director dos Monumentos Nacionais escreve-me autorizando-me a tratar com os donos do prédio a compra do terreno. Tocando no assunto aos donos da Abicada, vi tal relutância na venda, que o comuniquei ao Snr. Director-Geral e se julgou preferível não pensar nisso, visto que os donos permitiam as escavações .
  5. Iniciaram-se os trabalhos e os achados foram muito além da minha expectativa, conseguindo pôr à vista tão interessante construção, única no género e uma quantidade de mosaicos superior à encontrada em qualquer outra estação do Norte .
  6. Tive então de declarar aos donos da Abicada que tudo aquilo tinha de conservar-se no local por ser muito interessante para a arqueologia e até sob o ponto de vista turístico .
  7. Isso deu em resultado surgir uma grande má vontade dos Snrs. " Severo Ramos Lª ", que não só não quiseram estipular qualquer indemnização anual, como lhes pedi, mas até tiveram para comigo procedimentos incorrectos tais e tantos, que me levaram a abandonar os trabalhos, não tendo lá voltado desde Setembro do ano passado (1939) . Tinha precisamente nessa altura iniciado os trabalhos de consolidação. Chegaram os donos do prédio a destruir uma parte das escavações .

*   *   *

  • As Efemérides


ABICADA – 1917, SETEMBRO

O Prof. Doutor Leite de Vasconcellos visita a ABICADA à qual se refere nos seguintes termos:
" … A quinta da Abicada dista de Portimão 7,5 quilómetros e faz fronteira à Mexilhoeira Grande. Nesta encontrou o Snr. Maravilhas um belo mosaico que forra o chão de um compartimento rectangular, de cujo restam vestígios em toda a volta. O mosaico é policrómico (cores vermelha, branca e preta) ; tem uma cercadura que abrange desenhos de vários tipos. Junto do referido compartimento há um maior também com mosaico de desenhos diferentes, destruído em parte e quase contíguo vê-se um terceiro fragmento do mosaico. Pelo terreno da Quinta aparecem pedaços de vidro e de tegulas e clavi de ferro"… (in “ARCHEOLOGO PORTUGUES” – XXIII, 128 ; “DE TERRA EM TERRA” – II, 236)

1930, OUTUBRO:


Visita a ABICADA o Dr. José Formosinho acompanhando o sábio alemão, Prof. Doutor Adolf Schulten com o fim de verem os referidos chãos de mosaico, que ainda não conheciam.
"… Foi impossível. De um deles viam-se apenas vestígios ; do segundo compartimento, duas paredes incompletas e estava entulhado  com fragmentos de telhas e ladrilhos modernos ; finalmente o primeiro mencionado estava completamente tapado com terra e ervas , tendo-se-lhe feita uma pequena clareira por onde se descortinavam vestígios de mosaico destruído. (in “ABICADA – Importante Estação da Época Romana no Algarve”, comunicação de 5 /Outº / 1938, do Dr. José Formosinho para Instituto Portug. Arqª; Associação dos Arqueólogos e Dr. João Pereira Dias).


1935, MAIO:

"Com esta ideia fixa, voltei à Abicada e fiz destapar completamente o espaço fechado pelos muros onde se encontrava o primeiro chão de mosaico, o qual estava em regular estado de conservação, excepto o centro que se achava bastante deteriorado; tinha a barra quase inteira e os cantos de Nascente em muito bom estado. Estava coberto por 0,20 m a 0,30 m de terra e por sobre ele passava o arado quando das lavouras, dizendo-me o quinteiro que todos os anos ao lavrar lhe saltavam pedrinhas daquele sítio.  Resolvi por isso extrair para o Museu o que pudesse, salvando-o da destruição que o ameaçava. Fiz igualmente destapar um canto do compartimento entulhado, mas o seu desenho não tinha grande interesse por ser muito simples : uma grega de uma só cor.  Infelizmente não foi possível nesse ano fazer a extracção por falta de verba e quando em, Dezembro de 1937 o fui extrair estava, como receava, bastante mais destruído, só podendo aproveitar dois bocados.
Um velho feitor dessa propriedade disse-me que naquele terreno foram outrora abertas covas para figueiras e que por vezes encontraram pedras aparelhadas, indicativas, de certo, da existência de muros ; era evidente que aquelas construções referidas pelo Snr. Doutor Leite de Vasconcellos deviam ter companheiras e resolvi procurá-las.”…


1935, JUNHO


Tive com o Snr. Director-Geral dos Monumentos Nacionais, Eng. Gomes da Silva, uma larga conversa em que expliquei o que lá presumia haver . Prometeu interessar-se. Autorizou-me a tratar com os donos da propriedade o que fosse necessário para na primeira, oportunidade se iniciarem os trabalhos .
Voltei ao assunto em carta de 16/Dez° :

(Doc. 1) ---» Cópia dactilografada :

Exmo. Senhor

Director-Geral dos Monumentos Nacionais

……………(vários outros assuntos) ......................................

Há poucos meses tendo-nos sido comunicado que em um local denominado ABICADA, tinha sido posta a descoberto uma pequena parte de um chão de mosaico, também já nosso conhecido, pedimos à Câmara que nos fosse concedida uma pequena verba para a sua extracção a fim de evitar que por completo se destruísse. Porém ao tentar umas valas de reconhecimento no local, foi-nos revelada a existência de mais dois ou três chãos e vestígios de construções . Pareceu-nos por isso preferível não proceder à extracção do chão conhecido e tentar estabelecer aí uma estação de estudo da época romana , como nos consta se está procedendo em Condeixa. Não é porém isso possível com as insignificantes verbas de que este Museu pode dispor, que mal chegam para a instalação e conservação .

E porque julgamos que a exploração e estudo destes locais interessam de um modo geral à arqueologia nacional, e que por sua vez o Estado amparando as iniciativas particulares, contribui poderosamente para o desenvolvimento de uma ciência que tanto auxílio tem prestado à história nacional, ousamos rogar a Vª Ex.ª , como grande protector e impulsionador das admiráveis restaurações que neste últimos tempos se têm feito nos Monumentos Nacionais, se digne conceder a este Museu a verba necessária para salvar estes locais da destruição completa que os espera se não se lhes acode a tempo .

Lagos que a Vª Ex.ª já deve a obra de restauro e conservação da Igreja de Santo António e seus anexos, e a quem o País deve a salvação de muitos monumentos que estavam em vias de perder-se, espera ficar-vos mais uma vez profundamente reconhecida .

Lagos, 16 de Dezembro de 1935

A bem da Nação

O Director do Museu Regional de Lagos

ass) José Formosinho

1935, NOVEMBRO (fins )

Falei pessoalmente em Portimão com Severo Ramos pedindo autorização para os trabalhos de escavação. Não deu resposta definitiva por necessitar consultar os sócios .

Por necessitar resposta escrita escrevi dois dias depois pedindo-a (doc. A)  :

(doc. A) ---» Cópia dactilografada :

Exº Senhor Severo Ramos

Com os meus respeitosos cumprimentos, venho rogar a Vª Ex.ª a fineza de me dizer se conjuntamente com seus Exos. Sócios já tomaram resolução sobre a nossa conversa de ante-ontem acerca da Abicada .

É favor que desde já muito reconhecido agradeço .

de Vª Ex.ª

com muita consideração

ass) José Formosinho

 

Não respondeu !

1935, DEZEMBRO /17:


Escrevi novamente dizendo que tinha urgência na resposta (doc. B):

 

(Doc. B) ---» Cópia dactilografada :

Exº Senhor Severo Ramos

Queira Vª Ex.ª desculpar-me vir incomodá-lo de novo, mas recebi agora a autorização da Direcção-Geral para indicar as quantias a levantar para as próximas explorações, devendo enviar os projectos respectivos .

Rogo por isso a Vª Ex.ª a fineza de me dizer o que V. Exas. resolveram sobre os trabalhos da Abicada, a que me referi em minha carta anterior.

Mais uma vez afirmo a V. Exas. que serão indemnizados de quaisquer prejuízos pelo que V.Exas. reputarem, que por ventura venham a dar-se .

Creia-me com muita consideração

Lagos, 17 de Dezembro de 1935

V. Exas

Atº Ven. e Obrº

ass) José Formosinho

 

1935, DEZEMBRO /19:


Responde que autorizam com a indemnização de 5 alqueires de trigo ou Esc.= 120$00 . E que nada deverá ser tirado de lá (doc. C).

 

(doc. C) :



 

1935, DEZEMBRO / 20
Agradeci e fiz considerações (doc. D) .

(Doc. D) ---» Rascunho manuscrito :

Lagos - 20 - Dez. - 1935

Exmo. Snr.

Severo Ramos

Agradeço a Vª Ex.ª reconhecido a pronta resposta à minha carta de 17, bem como a condescendência para que proceda às pesquisas arqueológicas na vossa propriedade Abicada . Por minha parte e como representante (neste caso) do Snr. Director-Geral dos Monumentos Nacionais, que a isso me autorizou, garanto a Vª Ex.ª a indemnização de cinco alqueires de trigo a que Vª Ex.ª se refere na vossa prezada carta ontem recebida .

Sobre a condição de não ser retirado da propriedade objecto alguma encontrado nas pesquisas sem o vosso prévio acordo, é de aceitar unicamente porque se trata de pessoas inteligentes que bem compreendem o intuito e valor científico destes trabalhos . E por isso não oporiam o seu acordo a serem retirados os objectos de valor arqueológico que por motivos óbvios devessem ser retirados.

O Estado subsidiando estas explorações tem em vista : 1º = desenvolver os estudos da ciência arqueológica . 2º = proporcionar às pessoas que se dediquem a esses estudos o exame dos objectos que os possam comprovar .

Por isso concede-nos as verbas necessárias em troca de relatórios circunstanciados dos trabalhos devendo os objectos poderem ser examinados por quem quer que deseje acompanhar e desenvolver os ditos estudos . Para isso criou os Museus e as estações que igualmente subsidia .

Para o caso da Abicada não sabemos ainda se valerá a pena estabelecer lá uma Estação de estudo . Se assim for, todos os objectos que não sejam susceptíveis de deterioração ou desaparecimento aí serão expostos, no local, uma vez organizada a estação .

Se não valer a pena, decerto o bom critérios de V. Exas. se não oporá a que esses objectos que tenham valor arqueológico , recolham ao Museu para poderem ser estudados por todas as pessoas que a esta ciência se dedicam .

Por nos parecer justo e razoável que assim seja e que V. Exas. assim o entenderão não temos dúvida em aceitar a dita condição .

Compreendem V. Exas. que os objectos encontrados seja qual for o seu valor ou espécie e que não tenham valor arqueológico não nos interessam e serão imediatamente entregues a VªEx.ª.

Não procuramos fortunas ou tesouros escondidos, mas sim estudar como viveram os nossos antepassados, as suas pequenas indústrias e todos os esclarecimentos possíveis para que a história, ainda em parte confusa, se possa elucidar . E assim V.Exas. favorecendo estas pesquisas tornam-se credores do reconhecimento de todos os que a estes estudos se dedicam .

Com a maior consideração e os nossos cumprimentos de agradecimento, creia-me

de Vª Ex.ª

Att. Ven. e obrigado

ass) José Formosinho

 

 

(continua)