quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Migalhas de História da Nossa Terra III


Migalhas de História da Nossa Terra III

ONDE FOI LACCOBRIGA

Pelo Dr. José Formosinho      (Continuação)

 

Indica depois os objectos encontrados em cada um desses locais e diz: «E porque em tão largo espaço se manifestam vestígios de construções antigas nos pontos acima designados, posto que sem visível ligação entre si, houve quem neles quisesse ver assinalados os mal aventurados restos de Laccobriga».

É facto que em todos os ditos pontos há vestígios romanos. Mas a área abrangida é de dezenas de quilómetros quadrados. Ninguém por certo acreditará que a antiga Laccobriga ocupasse uma área dez vezes maior do que a actual Cidade de Lagos.

Este sábio escritor, como facilmente se conclui do capítulo da sua grande obra ANTIGUIDADES MO-NUMENTAES DO ALGARVE, em que a este assunto se refere, subordinado ao título «Tempos históricos», preocupava-se nesse momento em apurar onde seria a Laccobriga romana, que os Autores gregos e latinos davam como Cidade marítima. E em face da profusão de vestígios dessa época (mas todos insuficientes) em uma área de muitos quilómetros, não se decidiu por nenhum desses locais.

O que se tem neles encontrado ?

Na Fonte Coberta um grosso muro numa extensão de perto de quarenta metros que atravessando uma antiga ribeira se verifica que servia para regularizar as suas águas.

No Monte Molião um vasto cemitério na propriedade de César Landeiro (l) e na encosta, na propriedade da família Pimenta encontrou Estácio da Veiga um muro grosso e uma cisterna elíptica; foram-lhe oferecidos, também de lá, uma pequena figura de Mercúrio em bronze e uma «clepsydra» (relógio de água) de vidro, em forma de pinha, (z)

Em todos estes locais citados. pequenos tanques, vestígios de muros, muitos fragmentos cerâmicos e muitas moedas; mas tudo romano.

Objectos idênticos teem sido encontrados dentro da Cidade actual:

Diz Silva Lopes (3) que no interior da Cidade teem aparecido muitas moedas romanas em diversos tempos; logo depois do terramoto de 1755 acharam-se muitas nos entulhos.

Diz Paulo Rocha (4):«Nas ruínas da Cidade encontraram-se algumas moedas romanas e outras portuguesas que já não tinham curso».

Estácio da Veiga encontrou em frente do Hospital Militar junto à destruída Ermida da S.ª da Graça alicerces de construções romanas e pequenos tanques de salga de opus signinum (formigão) e algumas moedas romanas

Destes tanque, uns com o referido formigão outros com o opus vermiculatum (mosaico) foram encontrados em várias ruas quando se procedeu à canalização das águas, sendo os mais perfeitos na Rua Marquez de Pombal, quási ao voltar para a Rua Lima Leitão, com chão de mosaico já bastante deteriorado; vestígios de construções e fragmentos cerâmicos em três pontos da Rua Lima Leitão e em dois da Rua 5 de Outubro; uma tégula inteira e vários fragmentos cerâmicos na casa de Manuel Àrinha à Porta de Portugal; e por toda a Cidade e na Cerca do quartel, junto à muralha, muita cerâmica fragmentada e moedas romanas e outras de épocas posteriores. (5)

Não existem portanto menos vestígios dentro da Cidade do que nos referidos arredores. Mas sendo todos da época romana ou posterior não são suficientes, repito, para se localizar a Laccobriga pré-romana.

Porém Laccobriga existia; dela nos dão notícias os historiadores clássicos já referidos.

De todos os locais citados os dois únicos que tinham probabilidades de neles ter sido construído um castro, são apenas o Monte Molião e uma das colinas em que assenta a Cidade de Lagos.

Somos levados a excluir o Monte Molião, não só porque tendo sido já largamente explorado por três sábios arqueólogos (6) nele não foram encontrados vestígios de castro proto-histórico ou anteriores à época romana, mas também porque não é uma colina propínqua, visto continuar o terreno a subir de norte e nascente, embora com pouco declive.

Resta-nos portanto o interior da Cidade, que assenta sobre quatro colinas uma das quais tem todas as probabilidades de ter sido o fundamento inicial do castro proto-histórico que deu origem a Laccobriga.

Lagos tem sido uma vítima dos cataclismos cósmicos. Os terramotos de l7l9, l722 e especialmente o de 1755 destruíram-na por completo. Em qualquer vala profunda que se abra, fácil é verificar várias camadas de entulho perfeitamente distintas e demarcando épocas, principalmente na parte mais velha da Cidade.

Estou hoje plenamente convicto de que uma escavação metódica e profunda feita no bairro de São José, tendo por núcleo o local onde existiu a velha Igreja de Santa Maria da Graça, muitas surpresas e revelações deveria produzir de grande utilidade para a história de Lagos.

No campo das hipóteses, porque outro não temos por enquanto, não me parece falto de lógica dizer que foi aí o local onde teve início Laccobriga.


(1) explorado pelo Dr. Leite de Vasconcelos em 1894 — «De Terra em Terra» — Vol. II pág. 290 e Dr. José Joaquim Nunes — «Arqueólogo Português. Rol. V. pág. 102.

(2) Arqueólogo Português. Vol. XV pág. 222.

(3) Corografia —cit. pág. 232

(4) Monog. das Forças Militares de Lagos—pág. 74

(5) Grande parte destes objectos podem ver-se no Museu Regional de S. António.

(6) Estácio da Veiga — Santos Rocha — Dr. Leite de Vasconcelos.


Costa de Oiro 6 - Junho de 1935


MIGALHAS DE HISTÓRIA NOSSA TERRA - II


Migalhas de História da Nossa Terra II

ONDE FOI LACCOBRIGA

Pelo Dr. José Formosinho


Sem a mínima pretensão de dizer sobre o assunto a última palavra, tentaremos descobrir onde Laccobriga teve a sua fundação. Tarefa muito difícil, visto que este aspecto da sua história foi desprezado pelos antigos historiadores. Será por isso muito incompleto este nosso trabalho, mas poderá servir de base séria a quem com mais competência o queira ou possa desenvolver.

Remontemos a tempos mais primitivos. Transporte-mo-nos a essa época em que os povos abandonando o seu viver nómada começaram a fixar-se e já sabiam construir as suas habitações e núcleos de defesa.

Onde iniciaram essas construções? Nas alturas(l); não só por melhor avistarem o inimigo a distância, mas porque, tornando mais difícil o acesso, facilitavam a defesa.

Daí a proveniência dos CASTROS ou CRASTOS que nos aparecem desde a proto-história.

O CASTRO, embora o seu nome seja derivado do latim (?), não foi inovação trazida pelos Romanos. É raríssimo o Castro de feição romana que não assenta sobre outro Castro mais antigo, de carácter peninsular.

O CASTRO (BRIGA na língua dos Celtas) era uma espécie de acrópole, onde os habitantes da região se acolhiam para conjuntamente se defenderem, em face de uma invasão inimiga ou ataque de qualquer tríbu das vizinhanças.

E bem necessária era a existência desses redutos defensivos, em virtude da falta de paz e segurança que os textos clássicos afirmam haver nessa época, na região a que, por efeito de uma divisão política no tempo de Augusto, se convencionou denominar Lusitânia.

Foi este o fim inicial do Castro, que com o desenvolvimento das populações circunvizinhas, se tornava o núcleo de uma povoação permanente. Seria de início formado por uma rude muralha de panos de barro e pedra «sine calcis linimento» (2).

Mais tarde ou os próprios indígenas foram aperfeiçoando esses muros, ou povos invasores os destruíram para construir mais fortes muralhas, conforme as necessidades de defesa exigiam. Por isso, de muitos deles não existem vestígios.

No nosso País temos ainda belos exemplares de Castros pré-romanos, embora alguns com indícios de influências posteriores. São seus principais núcleos as regiões de Entre-Douro e Minho, Trás-os-Montes e Alto Alentejo: «Sabroso» (3), Citânia de Briteiros (3), Monte de Santa Luzia (4), Santa Olaia (5), Castro de Avelãs (6), etc, etc. (7).

Poucos, porém, conservaram intactos os vestígios das primitivas construções rastrejas, que tão preciosos elementos de estudo nos fornecem

No Algarve não sei que exista qualquer exemplar. Pena é, pois seria muito interessante podermos fazer a comparação da diversidade de culturas com as do Norte e Centro, bem como da influência exercida pelos povos invasores nas diversas regiões.

Poderemos no entanto afirmar, sem receio ; que como no Norte e no Centro do País, também no Algarve os primeiros núcleos de população fixa, foram os Castros.

Assente que o Paul não podia satisfazer às exigências, hoje absolutamente provadas, para que qualquer povo daquele tempo iniciasse a fundação de um povoado; assente (que Laccobriga é indubitavelmente pré-romana (8) e mesmo anterior à época Cartaginesa, como o seu próprio nome o confirma pela terminação BRIGA; vejamos, por deduções, qual o local que mais probabilidades possuí para ter sido o preferido para a fundação de uma Cidade que a História de Portugal tem que recordar a cada passo, pelo papel importante que por vezes representa.

Estácio, da Veiga, um dos mais sábios escritores que dedicaram um pouco de atenção a este estudo, diz-nos (2) que muitos teem sido os sítios indicados para localizar Laccobriga: Paul, Fonte Coberta, Serro das Amendoeiras, Jardim, Serro do Lago, Sargaçal, Figueiral da Misericórdia, Monte Molião e interior da Cidade.

(Continua)

(1) Dr. Leite de Vasconcelos — «Religiões da Lusitânia» Volume. I pág. 57, Volume II pag 79.

Dr. Mendes Correia — «Os Povos Primitivos da Luzitania» pág. 269 e seg. e outros.

(2) Alexandre Herculano — «História de Portugal» —III pág. 294 J Ramon Mélida — «Arqueologia Espanola» — pág. 75

(3) Dr. Martins Sarmento — (Estudo muito desenvolvido nos vários vol. da «Revista de Guimarães») e outros.

(4) Dr, Alves Pereira — «Habitações Castrejas do Norte de Portugal», in «Estudos do Alto Minho» —fascículo XIV.

(5) Dr. Santos Rocha — PORTUGÁLIA — Vol. II pág 320.

(6) Nery Delgado — Reconhecimento científico de S.° Adrião. Borges de Figueiredo — Revista Arqueológica — / pág. 85.

(7) Arqueólogo Português (em quási todos os volumes)

(8) vários Autores gregos e latinos a ela se referem - ESTRABÃO — Geografia III, 1, 6. PTOLEMEU — Geografia II, V, 5. —POMPONIO MELA — Di situ orbis — L° III Cap I. — PLÍNIO —Naturalis Historia — IV,ll3 e outros—Dr. Leite de Vasconcelos — Rel. Luzitania—-II pág. 59,73.— Dr. Adolf Schulten —Fontes Hispaniae Antique — passim.

(9) Arqueólogo Português— Vol. XV pag. 221


terça-feira, 15 de setembro de 2009

MIGALHAS DE HISTÓRIA NOSSA TERRA - I


MIGALHAS DE HISTÓRIA
NOSSA TERRA  -  I

A LENDA DA SUA FUNDAÇÃO NO PAUL
Pelo Dr. José Formosinho

LAGOS é incontestavelmente uma povoação antiquíssima. Mas a sua origem anda envolvida em trevas, talvez impossíveis de desvendar.
Muitos escritores (l) dela se têm ocupado, transcrevendo quási todos o seguinte: «Laccobriga povoação muito antiga, foi fundada por Brigo em (l899 antes de Cristo), no sítio do Paul, onde se encontram muitos alicerces de edifícios e grande porção de tijolos. Mais tarde (359 antes de Cristo) por se achar destruída, foi mudada para o local onde hoje está Lagos, por Bohodes, capitão cartaginês». Alguns desses escritores explicam que Laccobriga quer dizer cidade fundada por Brigo junto a um lago e por isso no Paul. Outros presumem lendária a fundação por Brigo; afirmam contudo a sua existência no Paul, em vista dos numerosos vestígios ali encontrados. Aceitam ainda todos que fosse mudada para o novo local pelos Cartagineses.
Os progressos da ciência histórica já não admitem certas lendas criadas pelos eruditos. A incredibilidade severa dos nossos tempos não aceita as tradições que possam ser destruídas pela análise dos factos, ou por documentos de qualquer natureza.
Vejamos pois, se teremos motivo para duvidar de que a vetusta Laccobriga tenha sido fundada no Paul, em face das débeis razoes em que estes escritores fundamentam as suas asserções.
Porque na palavra Laccobriga entra o radical — LACCO — querem esses escritores que fosse edificada junto a um lago e portanto no Paul.
Quanto à primeira afirmativa terão, por certo, razão. Mas não era necessário ir tão longe procurar o lago : Toda a parte baixa da cidade desde, pelo menos, a Praça do Poço, a Praça do Cano, todo o quarteirão entre estas duas Praças, a Porta de Portugal e o Rossio de S. João, foram terrenos conquistados a um lago ou Paul, isto é, terrenos alagados.
Provas? Quando há bem poucos anos se procedeu à canalização da água, não perdi de vista os trabalhos; tive então ocasião de verificar que em vários dos locais citados, à camada de entulhos se seguia uma camada de terreno indubitavelmente lodoso ; e próximo da esquina da Praça do Poço, antes de tornejar para a Rua Cândido dos Reis se encontraram bastantes fragmentos de madeira e uma argola de bronze que decerto pertenceriam a um barco. Infelizmente a madeira ao contacto com o ar desfez-se, porém muita gente a viu; e a argola, talvez alguém a tenha guardada. Mas o terreno lodoso fácil é de verificar, com uma pequena escavação. À Praça do Cano ou Praça Gil Eanes era denominada em todos os documentos antigos, que tenho lido, (2) por Ribeira dos Navios. E o Rossio de S. João, ainda em nossos dias era alagado.
Mas ainda contra a primitiva fundação da Laccobriga no Paul há argumentos de subido valor.
Brigo é um personagem lendário criado pela fantasia de historiadores antigos (pos-romanos) (3), pela necessidade de explicar a terminação «BRIGA» de dezenas de cidades da Península Hispânica, na ignorância da sua significação.
«BRIGA» é uma palavra celta que quer dizer: «altura fortificada» (4), «cidade fortificada em um alto». Correspondente a «CASTRO» (derivada do latim «Castrum»).

E o Paul não é, nem nunca poderia ter sido uma altura.
Ainda, pelos estudos arqueológicos a que tenho procedido em toda a área abrangida pelas confrontações atribuídas à Laccobriga do Paul, me foi possível verificar que todos os vestígios lá encontrados são de feição romana.
Todos as objectos que se encontram no Museu Etnológico de Belém, em Lisboa, levados dali pelo sábio etnólogo algarvio Estácio da Veiga (5), são romanos. Como romanos são todas as moedas, tégulas, tijolos, opus signinun, etc, citados por Paulo da Rocha na sua Monografia (6),
Agora ponhamos o raciocínio em acção;
Dizem : «Destruída a Laccobriga do Paul, Bohodes cartaginês fundou no novo local, a nova Laccobriga no Século IV antes de Cristo». Dos Romanos não se encontram vestígios no Algarve antes do Século I ou II A. C.
Como é que os vestígios romanos do Paul, indicam a existência duma cidade, que já não existia, pelo menos, 200 anos antes de os Romanos para cá virem ?
Se tivesse havido uma cidade no Paul, não seria lógico que, quanto mais não fôsse, alguns alicerces se descobrissem ?
Os vestígios do Paul são tão escassos e encontram--se tão afastados uns dos outros, que nos mostram imediatamente a sua proveniência: pequenas villae (casas de campo) disseminadas pelos arredores, numa área de muitos quilómetros. Umas, tinham as suas piscinulae de opus vermiculatum (mosaico), como o que está no Museu, (7) extraído da Boca do Rio outras, as teriam de opus signinum (formigão). Das primeiras ainda lá não encontrei nenhuma. Aqui e além vêem-se vestígios de um muro, tégulas. tijolos, restos de um pequeno tanque; uma ou outra sepultura e algumas moedas (7). Destas não vi que lá fosse encontrada nenhuma anterior ao III Século depois de Cristo,
Todos os escritores antigos, dão Laccobriga como cidade marítima.
Por tudo o exposto, julgo destruída pelo raciocínio a lenda da fundação de Laccobriga no Paul.


(l)—Citando apenas alguns dos mais modernos:
— «Antiguidades de Lagos e suas Igrejas», manuscrito (entre l7l7 e 1755), fls. 1 v.
— Coelho de Castro — Topografia da Freguesia de S. Sebastião, manuscrito (l756)—fls. 1 — Prior António Caetano da Costa Inglez Tombo de S.tª Maria, manuscrito (1828)— fls, 148.
— Baptista Lopes — Corografia do Reino do Algarve,
(l84) pág. 225.
— Pinho Leal—Dicionário—palavra LAGOS
— Paulo Rocha — Monografia das Forças Militares
de Lagos, pág. l5,
(2)—Arquivo da Misericórdia de Lagos — diversos manuscritos.
Antiguidades de Lagos e suas Igrejas, etc.
(3) — Por exemplo : Florião de Campo —Euchiridion de
los Tiempos e Garybay— História de Espanha.
(4) — Dr. Leite de Vasconcelos — De Terra em Terra
II pág. 36-—Arqueólogo Português I pág. 62
(5) — Estácio da Veiga — Arqueólogo Português. XV
pág. 220
(6) — Monografia cit. pág. 16 e l7
(7) — No Museu Regional de Santo António de Lagos.


Costa de Oiro nº 3 MARÇO 1935