sábado, 5 de setembro de 2009

O nascimento




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quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Os textos da Revista «Costa de Oiro»- 11


CIÊNCIA E CULTURA

PROBLEMAS DE ARQUEOLOGIA ALGARVIA
OS SILOS DE BENSAFRIM

Pelo Dr. JOSÉ FORMOSINHO

Muito prezo as opiniões dos mestres. Mas só as aceito enquanto documentos ou factos me não provam o contrário.
Não vou fazer as considerações  que seguem por sistemático propósito de oposição a quem quer que seja ; não posso, porém, deixar passar sem reparo afirmações contrárias à evidência, demais tratando-se de um importantíssimo problema da arqueologia algarvia, que muito me interessa.
Oxalá todos fossem de tão fácil e evidente prova como este. Porquê? Porque esses silos estão à vista e posso destapar dezenas deles, até mesmo aqui dentro da Cidade de Lagos; e quem lhes queira fazer um atento exame directo, pode, pelo simples raciocínio  e sem receio, afirmar que não podiam ter sido habitações neolíticas.
A sua forma de pote com entrada superior estreitíssima e com o fundo abaulado não permitiria a qualquer pessoa lá permanecer, senão em posição muito incómoda  e imprópria para dormir ou descansar das labutas diárias.
Os maiores que vi e fiz desentulhar tinham 2,m80 de altura, l,m85 de diâmetro de bojo e 0,m70 a 0,m75 de diâmetro de boca; os mais pequenos tinham l,m 20 de altura, 0,m95 de bojo e 0,m45 de boca. Em alguns encontrei terra, pedras e cacos de várias épocas; outros, os que presumo intactos, pois tinham ainda por tampa uma lage redonda pouco maior do que a boca, só tinham no fundo uns vinte a vinte e cinco centímetros de um pó muito fino e quasi negro.
O grande arqueólogo algarvio Estácio da Veiga, a quem sempre tenho prestado a maior homenagem e cujos ensinamentos merecem a minha profunda gratidão, ao estudar a arqueologia algarvia notou que a enorme quantidade de artefactos que nesta província encontrou da época neolítica, deveria ter sido possuida por uma população numerosa, que não poderia ter por habitações só as poucas cavernas existentes no Algarve. E não encontrando vestígios de outras habitações, foi levado a PRESUMIR que «seriam habitações pré-históricas na Aldeia de Bensafrim, muitos subterrâneos que a tradição refere serem celeiros dos Mouros».
Ele próprio porém, declara: «Nos ditos entulhos havia tantas coisas de diversas épocas, que em vez de auxiliarem a classificação do tempo a que pertence aquele cardume de subterrâneos, quasi contíguos, a dificultam e IMPEDEM. (Antiguidades Monumentaes do Algarve — Vol. II pág. 32o). Como se vê ele próprio se mostra indeciso. Se Estácio da Veiga tivesse encontrado algum desses subterrâneos intacto e só com utensílios da época neolítica, como nas necrópoles de Alcalár, de Aljezur e de tantas outras que explorou, então podia afirmar que esses deviam pertencer àquela época. Mas o argumento único de que se serviu para presumir que não fossem celeiros dos mouros «porque a serem deviam arrecadar muitos móis de trigo, o que importaria uma população rica e aglomerada, que só por excepção se poderia achar fora de recintos amuralhados,» não é suficientemente convincente, a meu ver.
A páginas 4l8 do Vol. II da mesma obra Estácio da Veiga diz: «Não impugno a tradição; ao contrário, julgo mesmo que alguns subterrâneos possam ser originários dessa época (arábica)».
Não é por isso lícito basear em Estácio da Veiga a afirmação de serem habitações neolíticas  as covas de Bensafrim.
Estácio da Veiga, Edward Clodd (L´Uomo Primitivo), Hoernes (Pré-história), Mélida (Arqueologia Espanhola) e tantos outros são unânimes em concordar que sempre que o homem neolítico tivesse à mão as grutas e cavernas naturaes, eram essas as suas preferidas habitações. Mas quando as não tinham «abriram-nas os homens neolíticos em rocha que podia ser escavada com instrumentos de pedra ou de chifre.» Em Portugal são típicas as Covas de Palmela que constam de vestíbulo de planta trapezoidal e câmara circular de trez a oito metros de diâmetro e tecto semelhante a abóbada com abertura no meio para ventilação. (Mélida, ob. cit. pág: 33). Alves Pereira, no Arqueólogo XXVI pág. l73, estudando uns subterrâneos aparecidos em Lisboa, diz: «E as covas? Provavelmente eram celeiros, tulhas, ou para ferir o termo justo, silos medievaes. Uma possível atribuição pré-histórica julguei que devia ser posta de parte».
Na verdade todas as grutas artificiaes onde se teem encontrado vestígios de habitação pré-histórica são de contorno campaniforme, a sua entrada lateral e fundo mais ou menos plano.
«As cavidades de utilização agrária eram acentuadamente ovóides.»
Mas não é lícito confundir «silos» com «fundos de cabanas». Só quem nunca viu, nem uns nem outros, pois em nada se comparam. Aqueles, são perfeitos potes escavados no solo. Os «fonds de cabanes,» que também por cá se encontram a cada passo, «sont constitués par des couches superposées de débris de cuisine et d'industrie, accumulées autour du foyer des habitations pré-historiques». «Cuvetts évasées, creusées plus ou moins profondement en terre, et qui formaient les planchers des habitations». Assim os define e muito claramente o «Manuel de Recherches Préhistoriques, ( pág. 290 a 398) publicado pela Sociedade Pré-histórica Franceza. Ora não encontro dicionário nenhum que traduza «cuvette» por pote, mas sim por «bacia, tigela»: «vase large, peu profond, evasé». Assim o explica o Larousse Illustré.
Para terminar: é preciso frizar que os silos que se encontram nas ruas de Bensafrim estão quasi todos cortados, ou desgastados pela passagem contínua por sobre eles desde há muitos séculos, pois se encontram à vista no próprio pavimento da rua.
Os que se encontram nos campos, podem com mais firmeza servir de estudo sério pois teem, em geral, uma boa camada de terra arável que os encobre.


- Costa de Oiro - 11.

domingo, 30 de agosto de 2009

ABICADA - artigo de Mário Lyster Franco no DN


Pelo Sr. Dr. José Formosinho, ilustre director do Museu Regional de Lagos, está sendo posta a descoberto nos arredores de Portimão uma notável estação da época romana, que é já hoje pelos seus primorosos mosaicos, uma das mais ricas, se não mesmo a mais rica; que fica existindo em Portugal.
Esta notícia, a primeira que sobre tão importante assunto vem a público, vai de certo causar viva satisfação, em todo o Algarve e nos meios cultos do nosso País e constituirá uma autentica surpresa para grande número dos nossos leitores, ainda que o local das descobertas fosse já, do conhecimento dos arqueólogos nacionais. Trata-se da Quinta da Abicada, a 7,5 km de Portimão, junto à estrada que conduz a Lagos e propriedade que foi da família Maravilhas e é hoje de uma firma comer­cial na mesma cidade estabelecida. Per- tencia á freguesia da Mexilhoeira Grande, situada em frente da povoação da Figuei­ra. A essa quinta se refere uma notícia publicada em 1917 pelo sábio professor Sr. Dr. Leite de Vasconcelos, em «O Archeologo Português», pois nela fora tempos antes descoberto um belo o mosaico romano formando o chão de um compartimento rec­tangular, murado em volta e tendo junto vestígios de outros dois mosaicos mais ou menos danificados. A quinta era já então toda fértil em vestígios romanos pois nela se encontravam com frequência pedaços de cerâmica vulgar e vidro.
Passaram-se os anos e quando o Sr. Dr. José Formosinho começou a entregar-se mais activamente ás investigações, em que tem revelada tanta proficiência e saber, das descobertas anteriormente efectuadas na Abicada já pouco restava de aproveitável. Uma visita realizada em 1930, e por sinal que na companhia do grande arqueó­logo alemão Adolfo Schulten, já pouquís­simo permitiu ver, por entulhado e destruído, e teria resultado quasi improfícua se não tivesse deixado no espírito do Sr. Dr. Formosinho o convencimento de que alguma coisa dali poderia ainda aproveitar, para o Museu, que já então tencionava fundar e que hoje é uma das mais notáveis realizações da cidade de Lagos. Com esse propósito o Sr. Dr. José Formosinho voltou ao local em 1935, efectuando então algumas descobertas, mas só em fins de 1937 obteve da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais a verba que soli­citara e de que carecia para levar a efeito as extracções de mosaicos que desejava efectuar. Foram estas, realizadas em Agostoe Setembro do corrente ano, que provocaram a descoberta da importante estação romana a que esta notícia se refere. A ideia da extracção e da transferência parao Museu de Lagos dos mosaicos existentes foi logo muito louvavelmente posta de parte, por se verificar que era impraticável e mesmo inconveniente, dada a grandeza e importância dos achados.
A parte por agora explorada, que ocupa uma área de cerca de 1:300 metros quadrados, demonstra estar-se na presença dos restos de um vasto edifício, de que existem numerosos compartimentos separados por muros, mais ou menos destruídos, mas que ainda se elevam do solo, em alturas que vão até 0,75. O edifício comporta uma construção de forma hexagonal, que lhe ser­via de centro, pois dela saem, para poente e nascente, dois corpos rectangulares com várias divisões. O chão é, em quasi todos, revestido de mosaico policromico, com vá­rios desenhos de magnifico efeito decora­tivo e, em que chegam a ser empregadas seis cores (branco, preto, vermelho, amarelo, azul e verde). Ascende já a 14 o número de mosaicos descobertos, pois todos os compartimentos até agora encontrados, excepto dois, são por eles revestidos, e esse número, já bastante avultado e susceptível de; pelo menos, duplicar, pois somente metade do edifício foi explorado, demonstra-nos estar-se na presença da mais rica estação romana que, no seu género, fica existindo no País.



Diz-nos o Sr. Dr. José Formosinho, com quem trocámos impressões sobre o assunto e em cuja, amável companhia visitámos o local, que não é possível, por enquanto, saber o que seria o edifício cujos restos se encontraram e que, a avaliar pelo seu tamanho, riqueza e abundância de mo­saicos, parece ter sido residência de algum romano muito rico. De resto, todas as hipóteses são possíveis e mister se torna obter sobre a descoberta algumas conclusões seguras. Toda, a quinta é, como já acentuámos, fértil em restos de origem romana e do edifício em questão apenas pouco mais de metade se encontra explorada, ainda que já se conheça a existência do resto. A este edifício outros se poderão seguir e pode mesmo estar naquele local a chave do problema da localização exacta de Portus Hannibalis, que, atribuída ás imediações, tanto tem intrigado os arqueólogos nacionais e estrangeiros: A estação agora descoberta fica numa eminência de terreno quasi em frente da foz do rio Alvor e dominando uma extensa área, ao mesmo rio conquistada em épocas recentes. Situação magnífica, tanto podia ter servido para assento de uma vivenda de qualquer ricaço, como de uma povoação de relativa importância. Os achados miúdos até agora efectuados, limitados a algumas centenas de tijolos de sector e rectangulares, e muitos fragmentos o de «tegulae» e de «imbrices» e cinco bronzes, dois dos quais de Arcadius, não têm sido de molde a facilitar uma classificação definitiva do local, mas logo que as escavações recomecem, algo de muito importante pode surgir de um momento para o outro.
Resta acrescentar que as explorações em que o Sr. Dr. Formosinho ocupou durante mais de um mês algumas dezenas de homens se encontram suspensas, não só pelo facto de não estarmos já na época mais aconselhável para as realizar, como também por se ter esgotado a verba de que se podia dispor para o efeito. O ilustre investigador fez já sobre o assunto comunicações ao Instituto Português de Arqueologia, Historia e Etnografia e à Associação dos Arqueólogos, organismos de que é sócio, e à Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, de onde conta obter a verba indispensável para poder prosse­guir nos seus importantes trabalhos. Esta certamente que não lhe será regateada, pois que esse prosseguimento se impõe em absoluto, como igualmente se impõe a consolidação imediata do que se encontra des­coberto e vai ser de novo tapado para que não seja destruído enquanto essa consoli­dação se não efectue. O local deve ser também considerado desde já monumento nacional, facto que se não lhe dá uma protecção absoluta - e haja em vista o estado em que se encontra o monumento nacio­nal das ruínas de Milreu, nos arredores de Faro - sempre constitui uma garantia, que, convenientemente utilizada, não é pa­ra desprezar.
M. L. F.





ABICADA - Interessante Estação da Época Romana - 1941

Não sabe ainda a Arqueologia, de positivo, o que encerra o local conhecido pelo nome de Abicada. Isto porque as escavações por mim iniciadas em Agosto de 1938, foram suspensas. Vamos, porém, fazer uma resumida descrição do que até agora conseguimos pôr á vista, para que, pelo menos no Algarve, se não ignore que ali existiram curiosos vestígios da civilização romana, que já foram com justiça classificados Monumento Nacional.
A Abicada é uma propriedade particular situada na confluência de duas ribeiras que descem da serra de Monchique a desaguar na Ria de Alvor: a ribeira do Farelo e a da Senhora do Verde. Dista de Portimão 7,5 quilómetros, e de Lagos 10 quilómetros e 800 metros.
Para mais facilitar aos que desejem contemplar o local, diremos que um pouco antes do Povo da Figueira (para quem vai de Lagos para Portimão) precisamente no sítio onde na estrada nacional se encontra o pequeno marco indicando que se passaram 800 metros após o quilómetro 10, aí mesmo ao lado direito, tem início uma estrada particular; seguindo-a até ao fim, vai dar-se ao Monte grande da propriedade da Abicada, em frente do qual, um pouco a Sul, se encontram as ruínas.



A planta das construções, que juntamos para melhor se compreender a nossa descrição, mostra ter sido um grande palácio, formado por três corpos distintos, mas conexos. Ao norte em linha recta corre uma parede comum com 54 metros, que de grossura deveria ter uns 70 centímetros; não há nesta parede vestígio algum de porta e em toda a sua extensão no exterior vê-se um aqueduto que despejava para dentro da construção por dois tubos de chumbo. A largura do edifício não a podemos precisar, visto a parte sul estar completamente destruída, variando a altura dos muros até um metro, nos sítios onde foram menos inutilizados pelos sucessivos amanhos da propriedade; a máxima largura que podemos verificar mede cerca de 28 metros.



Pela sua extensão julgo tratar-se de uma «Villa», casa de campo, de patrício rico; isto é, uma residência aristocrática, pois não creio que qualquer plebeu tivesse podido dar-se ao luxo de possuir uma casa tão grande e com tantos mosaicos.
Temos que pedir um pouco de auxílio à nossa imaginação para não fazer simplesmente uma descrição seca da planta; acompanhe-mo-la com a presunção do destino ou utilização de cada um dos compartimentos, segundo o que nos sugerem as divisões encontradas.
Como suponho que a entrada «Prothyrum» (A) era pelo corpo central e do lado sul, comecemos por aí a visita ao edifício.
Se esta parte não estivesse totalmente destruída poderiam certamente encontrar-se vestígios do célebre e conhecido dístico das casas ricas romanas: «Cave canem» (cuidado com o cão), cujo desenho em mosaico acompanhava o gracioso aviso.
Este corpo, que possivelmente seria o androceu (a parte de habitação destinada aos homens) é formado por seis compartimentos em disposição hexagonal, tendo ao centro um tanque «impluvium» (B) também hexagonal, separado dos «cubicula» (C) (quartos) por um «atrium» (D) ou corredor com 2,10 metros de largura; o tanque mede 2,20 por lado e em cada ângulo teria uma coluna, feita de tijolos triangulares, como verifiquei pelos vestígios encontrados. Dos seis compartimentos o de norte seria provavelmente o «triclinium» (E), pois era o maior. Todos eles tê em porta para o átrio, sem vestígio de qualquer outra saída. Os restantes seriam os «cubicula», algum deles possivelmente o «tablinum». Todas estas divisões, incluindo o tanque e o átrio, tinham o pavimento coberto por mosaicos policromos, mas só dois estão intactos; dos restantes há vestígios, apenas.



A poente desta construção central há uma outra em forma rectangular: ao centro o «peristylum» (F), pátio cercado de colunas, em volta do qual um «ambulacrum» (G) ou corredor que o envolve dos quatro lados, comunicando tanto para o norte como para o sul por amplas aberturas, com os outros compartimentos; e todos seriam afinal os aposentos das mulheres o «gynaeceum» (H) com o «oecus» (I) ou sala de recepção, junto dos quartos particulares da «matrona». A nascente e poente do corredor as «alae» (K) onde está o larário, com os deuses protectores da família e da casa, e conjuntamente relíquias e recordações de antepassados.
Nalguns destes quartos não faltavam os «frescos» nas paredes, dos quais vagas amostras estão guardadas no Museu de Lagos. Pena é que sejam fragmentos tão pequenos que não possa chegar-se a perceber qual o desenho que continham; das suas cores bastante desmaiadas ainda se conhecem o vermelho, o amarelo e cor de tijolo.
As suas decorações feitas a capricho, como era costume entre os romanos, deveriam formar um conjunto primoroso, de paredes ricamente pintadas.
Todos estes compartimentos são também revestidos de lindos mosaicos, sendo o do pátio central o mais bonito e variado.
A diversidade do seu desenho e colorido, tornam quási impossível a sua descrição; forma como que um tapete que por completo cobre o chão, numa área de cerca de trinta metros quadrados, tem em volta uma cercadura de entrelaçados e diversas figuras geométricas, cordões, flores estilizadas, etc..; no centro estrelas estilizadas e cordões entrelaçados, emoldurados por rectângulos multicolores. Os outros mosaicos não são menos interessantes: predominam as figuras geométricas com rendilhado mais ou menos fino. Há porém um a que devo fazer referência especial; não porque o seu conjunto seja mais interessante, mas porque nele se acha repetido, três ou quatro vezes, um símbolo que se diz de origem oriental e representante do coração de Budha, mas que já se encontra em monumentos proto e pré-históricos e em muitos ornatos da época romana: a cruz suástica. Aqui não é a suástica propriamente dita, mas sim a sua forma de hastes voltadas para a esquerda a que se dá o nome de «sauvastica». São também assim as do mosaico de Boca do Rio, encontrado por Estácio da Veiga e que hoje está no Museu Regional de Lagos. Neste mesmo pavimento se podiam ver alguns ornatos com fragmentos vítreos azuis, vermelhos e verdes, que uns visitantes se entretiveram a arrancar... para recordação! Foi curioso o comentário do guarda quando mo contou: «... e eram senhores de gravata»!



Finalmente o corpo do edifício a nascente seria a parte destinada aos escravos, celeiros, cozinha e mais dependências, com dez ou doze divisões bem definidas. Só em uma delas encontrei vestígios de mosaico e uma só também tinha o chão completo de tijolo.
Deveria portanto o edifício na sua totalidade ter mais de trinta compartimentos, o que representa certa opulência.
Pela policromia rica destes mosaicos lembra-nos que a construção seja do séc. 111 ou IV da nossa Era. Os poucos objectos encontrados nada nos dizem, mas as moedas legíveis são de várias épocas, desde o séc. I A. C. representado por um grande bronze de Antónia Augusta, mulher de Drusus, falecido em 39 A. C., até ao Séc. IV de que há vários médios bronzes, sendo os séc. II e III representados por moedas de prata de Antoninus Pius (138-161) e Júlia Mamaea (mãe de Alexandre Severo, falecida em 235).



Estes objectos, moedas, vestígios de estuque pintado, fragmentos de mosaico, que, por estarem isolados e em princípio de destruição, foram extraídos, estão no Museu Regional de Lagos, onde pensamos também expor uma pequena maquette da Estação da Abicada. Ainda a cerca de vinte metros a sudoeste destapei as ruínas de uma adega, lagar ou simplesmente tanques de salga, com os seus tinos revestidos de (opus signinum) o tal cimento que Estácio da Veiga, muito justamente, julga pré-romano. Esta construção infelizmente foi há pouco destruída na sua totalidade pelos donos da propriedade da Abicada. Compunha-se de um edifício formado por vários tanques de dimensões variadas que parecia comunicarem com outros tanques maiores colocados a nascente e sul; pelo lado norte corria a toda a extensão um aqueduto de alvenaria que se prolongava para poente até junto da nora recentemente aberta, mas com vestígios de sequência. Tanto este edifício como a casa eram construídos com essa fortíssima argamassa, como hoje se não faz, pois julgo que se perdeu a fórmula da sua composição.
Fiquei deveras surpreendido de não ter encontrado o (tepidárium), nem tão pouco a sala de ganhos frios com a sua respectiva piscina; nem a sua falta é justificada pela admirável situação do prédio na confluência das duas ribeiras e muito próximo do mar. Ficaria na parte arrasada? Enigma até agora indecifrado.
A ausência de vestígios de cerâmica fina, vidros e outros objectos miúdos, muito vulgares nestas explorações é explicável pela utilização posterior desta casa, o que foi fácil verificar pelos restos de argamassa e construções completamente diferentes do «opus incertum» romano. Para essa utilização fizeram novas divisões e por certo extraíram previamente os entulhos romanos.
Na comunicação que fiz superiormente em 1938 do que tinha posto à vista na Abicada, disse eu que entre os objectos encontrados existia um bocado de chumbo cuja serventia não tinha conseguido decifrar, não tendo visto ainda descrição de outro semelhante em autor nacional ou estrangeiro. Por isso o apresento como possível novidade arqueológica, podendo, porém, afirmar já, com absoluta certeza, o fim a que tal objecto se destinava.
Trata-se de uma peça de chumbo formada de duas hastes compridas de secção semi-circular, unidas por dois curtos espigos cilíndricos; téem as faces internas planas, notando-se que as faces curvas exteriores teriam sido moldadas com uma forma, do que resultou ficarem lisas, ao passo que nas faces planas interiores se verifica certa aspereza, proveniente de o chumbo ter solidificado sobre uma superfície mal polida.
Mede de comprimento 12 centímetros; cada uma das hastes moldadas tem de largura na face plana 1 centímetro e de grossura meio; os espigos teem de diâmetro três milímetros e sete de comprimento, sendo este o afastamento constante das duas peças moldadas, cujas faces são paralelas.
Logo de princípio deu-nos a impressão de que o chumbo teria sido aplicado como enfeite de qualquer objecto para ser visto de ambas as faces, objecto este que não poderia ter sido de vidro ou madeira porque sendo indubitavelmente aplicado o chumbo derretido, o vidro estalaria com tão alta temperatura e a madeira queimar-se-ia. Veio-nos logo I à ideia que seria aplicado a barro, mas longe de imaginarmos a sua utilidade, o que por muito tempo nos intrigou. Só quási no fim das escavações um novo achado nos elucidou por completo: era afinal Um Gato para ligar louça quebrada. Mas tão grande e tão diferente dos actuais que se não encontrássemos este segundo exemplar ainda ligado a um pedaço de louça, talvez não fosse possível afirmar o seu destino. As peças a engatar ligar-se-iam com inteiro ajustamento dos bordos quebrados; a igual distância de cada lado da quebradura far-se-ia um orifício que atravessava o barro e não como hoje que os orifícios se fazem apenas com a profundidade suficiente para prender a ponta recurvada do gato. Deitar-se-ia chumbo derretido nos orifícios, tendo de cada lado a forma onde seria comprimido o chumbo.
Deve ter sido este o processo mais primitivo de concertar louça, mas é indubitável que assim era usado pelos romanos, pois são indubitavelmente romanos os fragmentos de louça encontrados, não só por si, como por todo o ambiente em que foram achados e por todos os outros objectos que os acompanhavam.



Por enquanto nada mais é possível acrescentar a não ser que no monte, construção de recente data, no muro próximo da nora e nesta, muito fácil é encontrar as pedras que formavam outrora paredes daquele soberbo edifício, que gerações posteriores demoliram ou com o seu desleixo consentiram que o tempo destruísse, privando-nos de podermos fazer in loco um estudo perfeito do modus vivendi dos habitadores remotos daquelas vestutas ruínas.
Os chãos de mosaico acham-se por agora tapados de terra, sem o que seriam destruídos pelas chuvas, visto que não foram consolidados.
Ver-se-á tudo ainda destapado e de modo a resistir ao tempo, podendo ser admirado por nacionais e estrangeiros para glória do nosso Algarve? Não o creio; quando isso for resolvido não valerá a pena. Dentro de pouco das ruínas romanas da Abicada restarão estas palavras e estas fotografias a recordar-lhes a existência.
Pelo menos, foi esta impressão que colhi da última visita que lá fiz há meses.

Lagos, Junho de 1941
José Formosinho