sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Ermida de Nª Srª de Guadalupe

Ermida de Nª Srª de Guadalupe

Pelo Dr. José Formosinho



Um artigo do meu Amigo Snr. Dr. Lyster Franco no Diário de Noticias, veio revelar-me que a Igreja de Guadalupe se acha em estado, segundo informaram o articulista, de ameaçar ruína.
Ignora-o por certo, o ilustre Director Geral dos Monumentos Nacionais Snr. Eng.° Henrique Gomes da Silva, que com superior inteligência, tem feito restaurar umas dezenas de monumentos que o tempo e principalmente a incúria dos homens, iam levando à completa ruína. Há muita gente que não conhece essa pequenina Ermida e no entanto ela vale bem uma visita.
Quem desprevenido se dirija de Lagos para o Cabo, nome por que aqui no Algarve é conhecido o Sacro Promontório, quàsi lhe passa despercebida uma modesta Igrejinha que reputo uma das mais antigas de todo o Algarve.
Uns dois quilómetros antes da Raposeira, à direita da estrada, num vale, quási escondida como que envergonhada da sua pobreza, está essa pequenina jóia, a que o povo chama Nossa Senhora de Aguadelupe,

Igreja de corpo rectangular de uma só nave, com capela-mor igualmente rectangular, mais estreita, mais curta e mais baixa.
Em toda ela encanta a simplicidade.
Pertence sob o ponto de vista artístico aos fins do Séc.° XII, correspondente à interessante época de transição romano-gótica.
Conserva a traça primitiva, porém fraca intuição artística de recentes restaurações, lhe têm desvirtuado o estilo em pequenos nadas, que são muito para quem tiver olhos de ver.
A porta principal é simples: uma só arquívolta, já de arco ogival de arestas chanfradas e ponto rebaixado, com muito de românico tanto nas bases como nas impostas.
Também os restantes arcos do interior, o triunfal e os da ousia, formam dois grupos de seis nervuras, cada um com a sua interessante chave ingenuamente lavrada com exemplares da fauna e flora locais.
Assim igualmente os capitéis das colunas, onde algas e folhas diversas, se misturam com peixes esquisitos, cabeças humanas e de animais, tudo de uma ingenuidade muito primitiva.
A abóbada, os arcos, nervuras, colunas, bem como um friso que corre à altura dos ábacos dos capitéis, tudo é de grés da região (pedra farinheira, como lhe chamam) de nuances de colorido desde o amarelo claro até ao vermelho de sangue, que alternando-se dão ao conjunto um lindo aspecto.
Ainda no interior devemos notar os dois grandes arcos ogivais da nave, que assentam os saimeis sobre mísulas simples e se apoiam em fortes mas deselegantes contrafortes que sobressaem das paredes laterais.
Ao fundo da ousia uma fresta destoa por completo do estilo, apesar de reparada há pouco; tinha um arco de volta redonda que lhe foi conservado. Presumo que tivesse sido na primitiva uma fresta geminada ou com pendural, de arco e ombreiras do mesmo grés e sem aparelho.
O altar pequeno e maciço, afastado do fundo como o estilo exige. A nave é coberta de telha vulgar e sem forro.
O exterior, de longe, nada tem que chame a atenção a não ser os arcobotantes que escaparam ao recente e infeliz reboco e à caiação; um friso liso sob o beiral do telhado, gárgulas simples e sem forma interessante; uma pequena porta lateral, também de arco de ogiva, chanfrado, mas de calcário duro. A rosácea que sobrepuja a porta bem como a cruz já não são da primitiva e destoam bastante.
Quem hoje olhe para o exterior deste monumento, supô-lo-há uma ermidinha de aldeia, construída de há pouco; tal é a impressão dada pela última restauração, deixada de-certo ao gosto do inconsciente artista.
Conhecia-a mostrando a sua vestustez com o aparelho à vista, conservando a patina do tempo. Era bem mais interessante. Pena é que a brandura da pedra dificultasse a sua conservação-
Quem a construiu ? Ignora-se. Possivelmente teriam sido os templários, visto que a ela não fazem referência as crónicas árabes, o que não sucede com a primitiva Igreja do Cabo de São Vicente a que chamavam «Convento dos Corvos ».
E claro que esse convento a que se referem as crónicas árabes, foi destruído, tendo sido posteriormente iniciada uma nova construção por D. Afonso III, a qual foi ampliada por D. Dinis.
Próximo dela diz-se que existiu a Quinta do Infante, na Raposeira, onde Ca-da-Mosto veio encontrar esse ínclito, herói descansando das fadigosas maquinações náuticas.
É de presumir e a tradição no-lo diz, que em Guadalupe muitas vezes ele assistiu aos ofícios divinos.
E a propósito, visto que nos referimos ao Infante D. Henrique é que passa neste mês o seu aniversário natalício, não serão descabidas duas palavras sobre um assunto, na verdade já cediço, mas sempre palpitante enquanto se não conseguir uma solução concorde do facto.
- Onde foi a Vila do Infante ?
É que ultimamente apareceram novas hipóteses, que vêm cada vez estabelecer maior confusão nos que pouco conhecerem da questão.
 última que li, diz que a Vila do Infante foi fundada em Alvor e que o Cabo de Sagres a que a carta infantista se refere é a Ponta da Piedade!
Para que refutar mais esta opinião ?
A VILA do INFANTE, TERÇANABALL e SAGRES são uma e única, situada na Península de Sagres.
Lá está tudo. A Igreja de Santa Maria ( hoje da invocação de Senhora da Graça desde l5l9), dentro da Vila ; a Igreja de Santa Catarina e o seu cemitério, de que podemos mostrar os vestígios a quem o desejar; o muro de boa fortaleza; e as poucas casas que se chegaram a construir.
Para que estabelecer confusão sobre a sua localização, se um exame detalhado ao próprio local nos desmente, com toda a evidência, qualquer hipótese que não seja esta ?
« mandey edeficar huua villa no outro cabo que ante do DITO cabo de sagres está aos que veem do ponente pera le­vante que sse chamaua terçanaball aa quall pus nome Villa do Infante ».
O Infante construiu a vila a que deu o nome de Villa do Infante onde outrora fora Terçanabal que fica no Cabo (de Sagres) que está a poente do DITO cabo de Sagres onde veem pousar as naus.
Não disse o Infante que tinha fundado a sua Vila no Cabo de Sagres, porque nesse tempo Cabos de Sagres (Cabos do Sacro) eram todos os cabos e pontas daquela região.
O nome de Sagres dado especialmente ao cabo hoje conhecido por esse nome só veio a fixar-se em diplomas posteriores à morte de D. Henrique, talvez por se tornar esse cabo, com a construção da Vila do Infante, o mais importante dos cabos de Sagres.
Parece-me isto intuitivo.
Porque se não organisa uma excursão com o único fim de estudar in loco quais os sítios onde as possibilidades do terreno permitiriam a existência da Vila do Infante, confrontando essas possibilidades com os documentos, vestígios, etc?
Aqui fica mais uma vez o alvitre, se bem que não creia na sua aceitação, porque isso iria destruir, talvez, tanto castelo...sem base.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

BOCA DO RIO -1

BOCA DO RIO
(Rascunho do Dr. Formosinho)

Para o Relatório sobre a Boca do Rio
p/ o Consº Superior de B. Artes


Quando eu era rapaz recordo-me que por várias vezes fui ao local denominado Boca do Rio. freg.ª de Budens, Concelho de Vila do Bispo, onde via umas paredes velhas que ora estavam a descoberto, ora desapareciam porque o mar as cobria com areia. Recordo-me também de por mais de uma vez ter visto lindos chãos de mosaico em alguns dos compartimentos, quando o mar se lembrava de fazer limpeza àquelas vetustas relíquias. A idade não permitia que lhes ligasse a devida importância. Passaram-se os anos. Comecei a entusiasmar-me por velharias, infelizmente muito tarde; e em 1930 quando voltei a esse local com vontade de estudar o que ainda conservava na memória, verifiquei com desgosto que já quase tudo tinha sido engulido pelo mar e que o único dos quatro chãos de mosaico, citados por Estácio da Veiga, que existia, já o mar entrara com ele e o começava a destruir. Faltava.lhe um pequeno bocado que corresponderia à sua vigésima parte. Dei o grito de alarme. Ninguém me quis ouvir. E quando em 1933 consegui da Câmara Municipal de Lagos uma verba para salvar o que ainda existisse d’essa relíquia do passado, já ela se achava reduzida a pouco mais de um terço! Tudo quanto lá estava pode ver-se hoje no pequeno Museu que a Câmara aqui criou e que me esforço por organizar.


Mostra-se seguidamente o desenho do mosaico que existia no chão do compartimento K.
(ver “Planta parcial dos edifícios antigos, explorados em propriedade de Domingos Rosado e outros, junto do flanco direito do extinto rio de Almádena e da margem do mar, no sítio dos Medos, vulgarmente chamado «BOCA DO RIO»”, por S. M. P. ESTACIO DA VEIGA)



No vol. XV do Arqº Português, pags 212 e seguintes, onde se continua a publicação póstuma das “ANTIGUIDADES MONUMENTAIS DO ALGARVE”, de Estacio da Veiga, lê-se :


“Uma grande cidade deve ter existido logo adeante da Praia da Salema, numa área a que se dá o nome de Boca do Rio. ........... assentamento de uma vasta povoação, deixando observar grandes e nobres edifícios arrasados e outros soterrados nos areais , cuja esmerada construção e decorações artísticas se recomendam à observação e estudo dos que chegam aquele solitário escampado ..........Procedeu-se à excavação e não obstante ser muito limitada, como se vê na planta junta deixou ela patentear vários edifícios que em seguida descreverei e belíssimos pavimentos de mosaico no mais perfeito estado de conservação como se mostra com a três estampas que seguem à da planta....................................................

Que cidade era então aquela que o oceano arrancou às nossas vistas subvertendo-a na sua grande maioria e soterrando-a nas dunas e médões de areia noutra parte ainda muito importante............?”




* (Continua) *



LAPIDÁRIA LACOBRIGENSE




Lapidária Lacobrigense

Pelo Dr. JOSÉ FORMOSINHO


Poderia Lagos oferecer uma óptima colecção lapidar, se o bárbaro terramoto e as muito bárbaras gerações de lacobrigenses que a esse cataclismo se seguiram, não tivessem inutilizado tão precioso documentário da história de Lagos.

Ao desmanchar um lancil dos passeios das ruas, uma sílharia construída após o terramoto, caboucos ou paredes antigas, muitas vezes se têm encontrado fragmentos de lápides epigrafadas ou pedras trabalhadas, que poderiam ser preciosos documentos do nosso glorioso passado, outras bons auxiliares de estudos genealógicos.

Talvez não deixe de agradar a alguns leitores da Costa de Oiro tomarem conhecimento de uma lápide, que existe hoje no MUSEU REGIONAL de LAGOS, que encerra um interessante conceito filosófico.

Pertenceu à sepultura de Pero Jaques Correia, que, segundo documentos existentes no arquivo da Misericórdia de Lagos, deve ter morrido cerca de l5o8.

Era natural de Lagos, Fidalgo da Casa Real e Conselheiro d´El-Rei. Foi comendador de Bouças e D. Afonso V em recompensa dos seus serviços, prestados no Reino e em África, deu-lhe em 1473 o Paul da Bordeira e Bordalete.

Em 1490 estando em construção o aqueduto de alvenaria, que D. João II mandou construir e que do Paul conduz ainda hoje a água para a Cidade ", recusou-se Pero Jaques o Comendador a esse pagamento, e o mesmo fizeram outros vassalões, moradores na Villa e termo ".

Desse facto se queixaram os moradores de Lagos, nas cortes que em Évora se realizaram em 1490, sendo seu procurador Soeiro da Costa, descendente, de certo, do célebre navegador do mesmo nome e que tem sido com ele confundido algumas vezes.

Mas vamos à lápide.

Este lugar pequeno coube em sorte depois de dar ao Mundo despedida a Pero Jaques Correia e sua consorte o corpo está aqui que o pôs a morte a alma esta donde a pôs a vida.

É pena não poder averiguar-se o nome do autor desta filosofia tão espirituosa.

Vê-se bem que não foi o morto que em vida teria mandado gravar o seu epitáfio, como muitas vezes sucedia. Talvez um desses frades amáveis e espertos, que conhecendo bem Pero Jaques, inteligentemente lançou mão da filosofia para não ferir a memória do Comendador.

Não disse nem bem nem mal. . . "a alma está donde a pôs a vida": conforme a vida que levou assim a alma estará no Céu ou no inferno. Ele epitafista não quis tomar a responsabilidade de o afirmar. Faria bem? Talvez que Pero Jaques Correia, o Comendador, tivesse levado vida que nem sempre fosse de louvar.

Revista Costa de Oiro nº 55 - Julho 1939